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E s o t é r i c o

[se eu sou algo incompreensível meu deus é mais]

 


Na esteira das bagagens ela encontra a mala suja de terra rolando torta, e sente vibrar a notificação de uma mensagem desencontrada.
A mala é azul de um marinho gasto, salino demais, alças surradas por empurrões de funcionários mal humorados em seus afazeres, tecido desbotado por trânsitos longos, mal cuidado em viagens às pressas, rodas tortas por calçadas de pedras.


A mensagem é o fim de uma história de amor que poderia ter sido escrita em verso, um dia quem sabe? Ali parecia apenas um folhetim, ou com algum esforço de abstração, uma prosa curta, muito sensata, com desfecho ruim.

 

Pensou, então, que amor e sensatez não costumam dar as mãos para atravessar rua. E que amantes apaixonados esquecem perfumes, desdorantes. E seguem, olhos vivos, corpos em chamas, mãos dedilhantes.

 


Voltou à esteira, à mensagem, e toda aquela bobeira. Se perguntou como foi que chegamos aqui? Em voz baixa seguiu perguntando por onde andamos, com que pernas bambas e bobas, com que ideias falsas, pequenas mentiras e falácias, e alguma mesquinharia? e agora uma mensagem em um aplicativo ágil avisa quão frágil é viver assim. Quando o amor tem um sorriso breve e rima ruim.

 


Olhos ressecados, deixou que lavassem um filete de lágrimas que não tentou esconder no saguão do aeroporto.

Falou baixo consigo, chorou sem óculos até a escada rolante, até ouvir que o ponto de táxi ficava à direita, e lembrou que amantes não são como funcionários, porque visionários de um país a ser inventado para si. País particular, ilha exótica em algum lugar perto, deserto ou aqui, mar de águas claras, turbulentas e nem sempre pacífico. Mas magnífico. Infernal e paradisíaco.

Porque amantes são pouco lúcidos, porque dançam entregues, porque amam precariamente sob noites de febres, porque não é assim que se escreve, quarenta e cinco toques, na moldura pobre de um celular, assim como quem breve encerra, sai à francesa, e cria para si a velha fábula do não há tempo para amar, nem para o café e a sobremesa, assim como quem não vê asas para voar.

 


Ela desligou seu três gê, entrou no táxi, se abandonou no banco de trás como alguém assiste um drama criado para tevê, e pensou que era bom voltar para casa suja de terra, olhos inchados, e coração apertado. Apesar de tudo. Porque era bom chegar em casa, mesmo e apesar de um conto curto, sobre ser o amor um cristal bruto, avesso ao muito civilizado, um tanto tumulto, um tanto extraordinário, contrário ao ritual e rotina de um funcionário. 

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